Estar em multidão nos faz sentir uma enorme força espontânea que
emerge da mobilização, em uma magnitude sem precedentes.
Aqui no Brasil, o último
movimento de rua na ordem de milhões de pessoas aconteceu em 1992, durante a
campanha pelo impeachment do Fernando Collor. No dia em que o Congresso votou a
favor do impeachment, eram mais de um milhão de pessoas nas ruas.
Pouco menos de dez anos antes, o movimento das “Diretas Já”
havia promovido comícios e passeatas que alcançaram um milhão e quinhentas mil
pessoas reunidas.
Antes disso, durante a ditadura, a Passeata dos Cem Mil e tantos
outros levantes estudantis foram precursores dessas ondas que encontram nas
ruas o seu palco e onde podemos sentir a força da multidão.
Ainda que vejamos muitas semelhanças, esta convergência de agora
parece significativamente diferente das demais, pois naquelas havia uma
bandeira que unia as pessoas. Seja o regime militar ou o presidente da
república, havia uma meta específica.
Agora não temos uma meta singular, e sim uma enorme agenda de
trabalho que provavelmente perdurará por algumas décadas.
Em um contexto no qual as bandeiras mais separam do que juntam
as pessoas, buscas apaixonadas por respostas sobre como realizar esta agenda
diante do desafio da diversidade dão o tom em um momento de incerteza
confiante.
Digo confiante pois estamos compreendendo a força das redes
sociais retroalimentando a enorme potência da população reunida.
A conquista dos simbólicos 20 centavos na passagem de ônibus, a
aprovação do projeto de lei pelo senado que transforma corrupção em crime
hediondo, a derrubada da PEC 37, o fim do 14o e 15o salário
para os congressistas, a divisão do dinheiro dos royalties entre saúde e educação,
a aprovação da PEC do trabalho escravo, o aceno de um plebiscito para a reforma
política, em uma grande reação por parte do governo demonstram a força enorme
da multidão e avivam um espírito assertivo e sagaz que está presente em cada um
de nós.
Muitas pessoas reativaram seu interesse político e sua
disposição em participar do processo e colocaram-se em movimento. Uma grande
parte segue se orientando por revolta e reclamação – às vezes até por preguiça
de aceitar um processo necessário de ressignificação pessoal – e outra grande
parte identificando o poder da rede e vendo que, como cidadãos, podem ser
protagonistas de suas vidas.
Apesar de um quase explícito processo de amansamento do povo
desde as origens coloniais, nossa origem indígena mais remota ainda viceja em
nossos corações, pulsando o espírito guerreiro em nossas células.
Herança da Confederação dos Tamoios, da Confederação dos
Cariris, da Resistência Guaicuru, da Cabanagem, da Vila de Belo Monte (chamada
Canudos pelo exército), do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, da Guerrilha do
Araguaia e tantos outros levantes populares visando o fim da subordinação do
povo a regimes de doutrinação política, econômica e cultural.
Estes não lograram êxito pois não possuíam as ferramentas
necessárias para sair do cativeiro. Mas o espírito de liberdade sempre esteve e
está em nós, por mais que haja uma força midiática orientada a produzir uma
sensação em contrário, ou seja, visando incutir um padrão cultural
caracterizado por frouxidão, subserviência e acomodação.
Resta agora compreendermos como fazer para que este poder seja
canalizado para a estruturação de um governo plural, democrático, consonante
com os anseios da coletividade, esta aqui se estendendo a toda a coletividade
da vida do Planeta Terra.
Um novo tipo de governo pode emergir desta ascensão em rede
popular, no que vislumbramos canais diretos de participação cibernética que
minimizam a necessidade de uma democracia representativa. Podemos criar um
sistema de processamento de dados que permita a tomada de decisão participativa
que alcança o nível de indivíduos e comunidades.
E começamos a mapear, pela primeira vez, um processo real de
transição política, econômica e cultural em que as ações não pareçam soluções
paliativas, uma sobrevida ao planeta doente, mas um estado de restabelecimento
da saúde social em uma nova eco-lógica que promova a transição para a
sustentabilidade.
Que os governos possam, portanto, se tornar aquilo para o qual
um dia foram criados: serem organizadores das estruturas sociais e dinamizadores
das potencialidades de cada cidadã(o).
É importante, contudo, que não fechemos os olhos e encaremos com
o coração aberto a triste realidade de intoxicação patológica das instituições
de governo.
O ambiente político está tão contaminado, que qualquer que seja
o escolhido para assumir o lugar de comando será forçado a se comportar de
maneira complacente ao sistema político-econômico hegemônico subjacente, de
modo a se tornar uma força de controle a serviço de uma elite movida por
interesses egocêntricos e enormemente distanciados do bem comum.
Somente com a população se colocando em processo participativo
de reforma e constituição de uma nova cultura política teremos como substituir
os agentes dessa elite dos postos de comando e configurarmos um novo governo de
coalizão baseado em princípios como os de inclusão, integração,
sustentabilidade e bem-estar.
A grande força política da multidão nas ruas é, portanto, o que
de mais ameaçador pode acontecer aos interesses desse comando e isso pode em
algum sentido explicar os atos desesperados de autoritarismo repressor através
das forças policiais que respondem às ordens do governo.
Precisamos de muita calma e coragem neste momento. As forças
hegemônicas parecem agonizar e farão de tudo para se manterem nesta posição de
controle. Estejamos juntos, em grupos, organizados, pois assim ganhamos força
e, sem atacar, podemos permanecer em movimento adiante, sem tampouco recuar ou
fugir.
Temos hoje o que nossos antepassados não tiveram: os meios de
comunicação em rede que nos permite organizar e nortear nossas ações em meio ao
confronto com as forças de repressão.
E temos acessível a sabedoria da não-violenta ativa, em que
podemos acolher a diversidade e focar nas virtudes para cocriar as soluções e
atrair a oposição para novos arranjos sinérgicos.
Estejamos conscientes desse enorme poder de comunicação em rede
que atua como medicina sobre a força patológica, fortalecendo a imunidade do
planeta, da sociedade, integrando a consciência, restabelecendo o equilíbrio e
seguindo em movimento pelas ruas.
Ao largo da espessa névoa gerada pelas ideologias paira uma
consciência coletiva integradora que nos conecta como seres humanos, para além
dos rótulos existenciais.
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Por Filipe Freitas
Publicado em http://autopoeta.wordpress.com
(Vejam também no blog os links para os episódios da série Uma Força Mais Poderosa –
Cem Anos de Conflitos Não-Violentos, exibida pelo GNT. Episódios da
história humana recente que nos trazem convicção de estratégias mais eficazes
que um contra-ataque bélico em direção à força opressora.)
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